A Nação Escolhida Começou com Avraham?
Avraham é largamente conhecido como o primeiro judeu1 – inclusive em alguns artigos de nosso site.2 Mas Avraham (e todos os ancestrais) viveram muito antes do Êxodo do Egito e da Outorga da Torá no Monte Sinai – os dois eventos que definiram a história judaica. Pode ele, então, ser realmente considerado um judeu? Em outras palavras, havia judeus antes de haver um “povo judeu”? Quando começou a nação judaica? E o que significa ser judeu?3
Para responder a essas perguntas, comecemos revisando a história da vida de Avraham como está registrada na Escritura, Midrash e comentários.
Quem foi Avraham?
Ele nasceu no ano 1948 da Criação (1813 AEC4), durante o reinado do poderoso Nimrod, que comandava quase toda a civilização.5 O pai de Avraham Terach, era um dos nobres de Nimrod. Avraham cresceu numa sociedade onde todos, incluindo o próprio Avraham, adoravam ídolos.6
Quando tinha apenas três anos7, Avraham começou a questionar-se incessantemente sobre a natureza do mundo, suas origens e que poder estava por trás de tudo.8 Continuou sua busca durante a juventude, gradualmente distanciando-se das práticas idólatras de sua geração enquanto começava a formular um monoteísmo puro.9
Aos 2510 anos casou-se com sua sobrinha11 Yiska (também conhecida como Sarai, e mais tarde, Sarah). Nessa época Nimrod começou a construir a Torre de Babel. A construção da torre foi um empreendimento gigantesco, no qual participou a maior parte da humanidade, e durou muitos anos. O Midrash explica que no seu ponto mais alto, a torre era tão alta que demorava um ano para chegar até o topo. Naquele ponto, um tijolo era mais precioso aos olhos dos construtores que um ser humano; se um homem caísse e encontrasse a morte, ninguém dava atenção, mas se caísse um tijolo, eles choravam, porque demoraria um ano para recolocá-lo.12
Avraham, que segundo dizem alguns, participou da construção da torre em seu estágios iniciais,13 foi veemente contra o projeto. Ele sempre admoestava aqueles envolvidos.14
Eis aqui como o Midrash nos relata a próxima parte da história: quando Avraham tinha 48 anos, no ano 1996 (1765 AEC), D'us contemplou a grande torre que estava sendo construída, e voltando-se para os setenta anjos que cercavam Seu trono (obviamente, em termos metafóricos). Ele disse: “Eles são um povo, e todos têm um idioma… vamos descer, e ali confundir a linguagem deles, para que se tornem setenta nações com setenta idiomas.”15
O Midrash então relata como D'us e os setenta anjos tiraram a sorte para ver qual anjo seria encarregado de qual linguagem e nação. Quando a sorte para D'us caiu em Avraham, Ele proclamou: “Tirei as porções em locais agradáveis; até a sorte Me favorece.”16
Este é o primeiro exemplo na vida de Avraham em que ele é descrito como sendo “escolhido” por D'us (e segundo algumas opiniões foi neste ano que o pacto entre D'us e Avraham ocorreu).17
Mais tarde,18 lemos sobre o retorno de Avraham para a casa de seu pai, como ele destruiu os ídolos do pai, e foi preso por heresia. Apegando-se firmemente à sua fé mesmo ao enfrentar a morte, ele é jogado numa fornalha ardente, mas D'us faz um milagre e ele sobrevive.
Até este ponto tudo está registrado em fontes talmúdicas e midráshicas. Somente agora finalmente encontramos Avraham em Lech Lecha, quando D'us lhe ordena: “Sai da tua terra e do teu local de nascimento e da casa de teu pai, para a terra que Eu te mostrarei.”19
Após muitas dificuldades e tribulacões que estão relatadas na Bíblia, D'us faz um pacto com Avraham e proclama: “Para tua semente Eu dei esta terra, do rio do Egito até o grande rio, o Eufrates…”20
Quando Avraham tem 99 anos, D'us lhe ordena fazer a circuncisão em si próprio e seus descendentes, dizendo: “E manterás Meu pacto, tu e tua semente no decorrer das gerações. Este é o Meu pacto, que cumprirás entre Eu e tu, e entre tua semente depois de ti, que todo homem entre vós será circuncidado. E deverás circuncisar a carne de teu prepúcio, e será como o sinal de um pacto entre Eu e ti…21”
De todo o acima, vemos claramente que:
a – Avraham foi escolhido por D'us.
b – D'us fez um pacto entre Si próprio e Avraham.
Além disso, segundo nossos Sábios, os antepassados não apenas aprenderam a Torá, mas guardaram seus mandamentos embora ainda não tivessem sido “dados”.22 Isso parece estar implicado no versículo: “Porque Avraham ouviu Minha voz, e cumpriu Minha ordem, Meus mandamentos, Meus estatutos, e Minhas instruções.23”
Para voltar à questão original, tudo isso parece mostrar a clara e inequívoca resposta que, de fato, Avraham foi escolhido por D'us, assim como toda a nação judaica foi escolhida no Monte Sinai, fazendo dele o primeiro judeu.
Mas esta conclusão é prematura. No Sinai os judeus foram escolhidos por D'us, mas eles também assumiram a obrigação de cumprir os 613 mandamentos da Torá. Os não-judeus são obrigados a cumprir apenas as sete Leis Noahidas. Se Avraham era de fato judeu, ele precisaria fazer mais que cumprir todos os mandamentos da Torá. Ele teria de ser obrigado a cumpri-los. E parece que não era este o caso.
Obrigação
Voltando aos detalhes, há opiniões diferentes sobre o status de Avraham sobre o cumprimento da mitsvá:24
Alguns explicam que, como poderia parecer lógico, que embora Avraham inicialmente tivesse o status haláchico de um não-judeu Noahida, depois que ele entrou no pacto com D'us e recebeu o mandamento da circuncisão, ele foi considerado um judeu pleno.25
No entanto, a maioria discorda. Embora seja verdade que nossos antepassados não somente aprenderam a Torá, mas cumpriram suas leis embora não tivessem sido dadas, eles jamais foram ordenados a fazê-lo. Seu cumprimento desses mandamentos foi um sinal pessoal e voluntário de sua devoção a D'us. Eles não foram obrigados na maneira que seus descendentes seriam após o Sinai.26
Da mesma forma, quando nos referimos a Avraham como o primeiro judeu ou convertido,27 isso não significa que ele era realmente judeu no sentido que conhecemos hoje – no sentido de uma obrigação. Em vez disso, ele tinha o status técnico de um Noahida, assim como qualquer outra pessoa da época (embora fosse alguém que tinha recebido mandamentos adicionais únicos como a circuncisão, à qual de fato foi obrigado28)29 Não foi senão até que seus descendentes fossem ao Monte Sinai e D'us proclamasse: “Vós sereis para Mim um tesouro entre todos os povos e sereis para Mim um reino de príncipes e uma nação sagrada,30” que nos tornamos o povo judeu.
Há uma aplicação prática na distinção entre cumprimento voluntário e obrigatório dos mandamentos da Torá: Como dissemos, um Noahida é obrigado a cumprir as Sete Leis Noahidas, mas não as 613 leis da Torá. Se houvesse algum conflito entre manter as futuras Leis da Torá e as Leis Noahidas, a obrigação de manter as Leis Noahidas iria superar as Leis da Torá que eles não eram obrigados a cumprir.
Mas tudo isso agora nos deixa com uma forte dúvida: O que há de tão especial sobre o pacto no Sinai que somente então nos tornamos o povo judeu, algo negado até mesmo a Avraham? O próprio Avraham não foi escolhido por D'us? Ele próprio não aprendeu a Torá, guardou seus mandamentos, e fez um pacto com D'us? Então qual é a diferença?
Sobre Escolhas
Para ir direto ao ponto, temos de fazer outra pergunta fundamental – não sobre Judaísmo, mas sobre escolha. O que é escolher? E o que escolha significa?
Desde escolher que roupa vestir pela manhã até decidir o que teremos para o jantar, estamos constantemente engajados em fazer opções. A maioria dessas escolhas é feita após pesarmos os fatores e qualidades associados àquilo que está sendo escolhido. Escolhemos nossa roupa baseados na imagem que queremos projetar, nossa auto-identidade, ou talvez pelas exigências do emprego. Escolhemos nosso jantar com base na saúde ou no sabor. Nenhuma dessas escolhas realmente é aquilo que chamamos de opção livre. Na verdade, seria mais acurado chamá-la de escolha compulsória, pois em última análise, o motivo pelo qual você escolheu é porque há alguma coisa naquilo que fez você querer ou precisar daquilo.
É apenas quando temos à frente dois objetos aparentemente idênticos, e mesmo assim escolhemos um em detrimento do outro, que podemos dizer que realmente escolhemos.
Agora voltemos a Avraham
Já aos três anos de idade Avraham começou a longa busca pelo único D'us verdadeiro.31 Depois que ele O reconheceu, devotou o resto de sua vida a espalhar a verdade num mundo totalmente pagão. A tarefa solitária de Avraham o chamava a usar todas as suas energias, indo além do ponto do auto-sacrifício. Apesar disso, ele nunca fugiu a isso, e sempre perseverou.
Sob essa luz, não admira que D'us prometa a Avraham que “… Eu estabelecerei Meu pacto entre Eu e você, e entre sua semente depois de você no decorrer das suas gerações como um pacto eterno, para ser um D'us para você e sua semente depois de você…”32
Não foi senão até a Outorga da Torá no Monte Sinai que D'us realmente escolheu a nação judaica. Ele os escolheu não por causa de qualidades superiores que eles tivessem. Pelo contrário, A Outorga da Torá no Monte Sinai celebra D'us escolhendo os judeus para serem “um reino de príncipes e uma nação sagrada,”33 apesar de sua aparente semelhança com as outras nações do mundo.
Em outras palavras, antes do Sinai, D'us escolhendo Avraham e seus descendentes foi baseado naquilo que pode ser chamado de “uma escolha arrazoada”. No Monte Sinai foi uma escolha “real”, supra-racional.3435
Vínculo Inquebrantável
A Mishná declara: “Qualquer amor que depende uma uma consideração especifica – quando aquela consideração desaparece, o amor cessa; se não depender de uma consideração específica – nunca cessará.”36
Não fomos escolhidos para nos tornarmos “uma luz entre as nações” devido a quaisquer qualidades únicas. Pelo contrário, o Judaísmo é baseado na escolha de D'us por nós apesar de nossa não-singularidade. Mas é exatamente este tipo de escolha que torna nossa missão única neste mundo a mais humilde e inspiradora.